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A gaiola está aberta, por que ela não voa?

7 abril, 2025
por Sarah Monteiro Amorim

Ao longo da história, as mulheres conquistaram direitos que antes pareciam inimagináveis: o voto, o direito ao trabalho, ao estudo, ao divórcio e o controle sobre o próprio corpo. Mas, ainda hoje, existe uma grande parte delas que se posicionam contra esses mesmos direitos, apoiando legislações que restringem sua autonomia e reforçando discursos que negam sua própria voz. Como explicar esse fenômeno?

A resposta está na maneira como a realidade social é construída, a percepção coletiva de um grupo, e uma longa história de opressão que continua a moldar a forma como cada mulher se percebe e percebe o mundo ao redor. A realidade social consiste em uma percepção coletiva criada por meio da socialização – um processo no qual os indivíduos absorvem, reproduzem e reforçam normas e valores. No caso de mulheres que rejeitam seus próprios direitos, podemos enxergar um processo de socialização profundamente enraizado no patriarcado presente na grande maioria das culturas atuais. Fenômeno que se baseia na aquisição do poder masculino por meio de funções de liderança e cargos de autoridade, no qual apenas homens têm a oportunidade de ter moral e controle.

A socialização das mulheres e a normalização da inferioridade

Os pensadores Berger e Luckmann explicam que a socialização ocorre em duas etapas principais: a primária e a secundária. A socialização primária acontece na infância, quando a criança aprende as estruturas básicas da sociedade. Para muitas meninas, esse aprendizado já vem carregado de mensagens que reforçam um papel passivo: ser delicada, obediente e responsável pelo bem-estar dos outros. Por meio da moda, dos brinquedos, das histórias infantis, essas mensagens são constantemente reforçadas. Desde cedo, meninas são incentivadas a brincar de bonecas, a imaginar-se como princesas e a valorizar a estética e a obediência, enquanto estímulos para a autonomia e autovalorização são geralmente deixados de lado.

Já a socialização secundária ocorre ao longo da vida, reforçando e desenvolvendo os conceitos aprendidos durante a socialização primária. Esse processo é o fator determinante do posicionamento do indivíduo na sociedade, é aqui que se aprende fora da sua instituição familiar, entrando em contato com novas perspectivas, valores e expectativas sociais. A escola, a mídia, o trabalho e os grupos sociais, nessa fase, encarregam-se de consolidar ou desafiar os ensinamentos recebidos na infância.

Nesse contexto, mulheres geralmente encontram normas que reforçam desigualdades de gênero, como a valorização da aparência sobre suas competências ou a limitação de suas aspirações a certos campos profissionais e até mesmo a dúvida sobre suas capacidades físicas e mentais. O acesso à educação superior, o engajamento em movimentos sociais e a inserção em espaços antes dominados por homens oferecem oportunidades para questionar e reconstruir tais papéis sociais.

Ainda assim, é preciso reconhecer que o conhecimento feminino foi historicamente desvalorizado e apagado. Ao longo dos séculos, a participação das mulheres na produção do saber foi sistematicamente invisibilizada em muitas áreas do conhecimento, inclusive com o impedimento do direito ao estudo, e muitas vezes tendo suas descobertas apropriadas por homens ou reduzidas ao anonimato. Tal apagamento tem raízes na própria construção social da realidade, que associou o intelecto e a razão ao masculino, enquanto o feminino foi vinculado à intuição e à emoção, processo que também se reflete na maneira como a história em geral é contada. 

Grandes autoras, como Silvia Federici, revelam como a perseguição às mulheres ao longo da história foi um mecanismo de controle. Durante a transição do feudalismo para o capitalismo, mulheres que tinham autonomia – como curandeiras, parteiras e camponesas que resistiam à exploração – foram acusadas de bruxaria e exterminadas. O objetivo era consolidar uma ordem patriarcal que subordinava as mulheres ao trabalho doméstico e à obediência irrestrita. A habilidade de fala feminina foi restringida, e o conhecimento produzido por mulheres foi marginalizado ou apagado. O saber ancestral sobre saúde, reprodução e práticas comunitárias, antes compartilhado entre elas, passou a ser controlado.

Tal controle persiste nas sociedades atuais, ainda que com novas roupagens. As mulheres que rejeitam seus próprios direitos não o fazem porque são “inimigas de si”, mas porque foram socializadas em uma realidade que naturaliza sua posição inferior.

Uma Jornada Paralela

Enquanto a sociedade avançava em tecnologia, economia e política, mulheres construíram uma evolução paralela, à procura de direitos, liberdade, segurança e representação. No século XIX, enfrentaram resistência para estudar. No século XX, lutaram pelo direito ao voto e ao trabalho. No século XXI, ainda enfrentam debates sobre seus direitos reprodutivos, sua presença no mercado de trabalho e sobre violência. Essa evolução paralela nunca ocorreu de maneira homogênea. Mulheres negras, indígenas, trans e LGBTQIA+ ainda enfrentam desafios em uma luta ainda mais complexa, na qual suas representações e as vozes foram esquecidas até mesmo pelos próprios movimentos feministas.

Mulheres negras não apenas lutam pelo direito ao voto e ao trabalho, mas também por sua humanidade em uma sociedade estruturada pelo racismo. Direitos que estão sendo conquistados em um ritmo mais lento, a exemplo da desigualdade salarial que ainda reflete essa história de exclusão. Mulheres indígenas vivem a luta pela sobrevivência de seus povos e suas culturas, resistindo ao apagamento histórico e ao avanço de políticas que violam seus territórios. A imposição de padrões coloniais também impactou diretamente suas vivências, deslegitimando seu modo de organização social e restringindo sua participação política. Mulheres trans, por sua vez, estão em uma batalha diária para serem reconhecidas como mulheres e terem sua existência validada. A exclusão, a transfobia e a violência ainda as colocam entre os grupos mais vulneráveis da sociedade, com dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, à saúde, à segurança e à dignidade .

A evolução feminina nunca foi única nem linear, mas múltipla e cheia de camadas. Enquanto algumas conquistas foram celebradas, muitas mulheres continuaram e continuam à margem dessa história.

A gaiola precisa ser vista para ser superada

As barreiras que restringem a aceitação do feminino não são notadas à primeira vista. Elas estão nas estruturas sociais, nas normas culturais, nos discursos que se repetem sem questionamento. São as expectativas impostas desde a infância, os obstáculos sutis no mercado de trabalho, a desvalorização do conhecimento feminino e a exclusão de mulheres negras, indígenas e trans dos espaços de poder. Quando essas barreiras não são reconhecidas, a ilusão de liberdade se instala e a luta por mudanças parece desnecessária. As notícias diárias de feminicídio, a disparidade salarial, a violência, o apagamento histórico e a intolerância não deixam dúvidas: a gaiola existe.

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